O Projecto " Arte Nossa" nasce pela necessidade de atribuir um novo ênfase às questões dos ofícios tradicionais de Castelo de Vide, uma vez que enfrentam o risco de desaparecer por completo, perdendo-se, assim, parte da memória colectiva de Castelo de Vide e, consequentemente, da sua autenticidade.É neste sentido que pretendemos não somente apresentar alguns destes ofícios, como também debatê-los num contexto teórico e numa perspectiva futura.Assim, o projecto incidirá em dois aspectos distintos mas que se complementam: por um lado a mostra de ofícios que será apresentada em pontos específicos da vila que o visitante percorrerá; por outro lado, um debate sobre a importância dos ofícios enquanto manifestações da identidade e autenticidade de Castelo de Vide, bem como promotores de desenvolvimento local.


A Arte Popular

Inicialmente, o trabalho desenvolvido pela antropologia portuguesa restringia-se ao levantamento das tradições populares, não atribuindo os antropólogos, nas décadas de 1870 e 1880, real importância à “arte popular”, porquanto apenas se interessavam pela recolha de contos, romances, provérbios e superstições.
Assim, foi Adolfo Coelho nos seus Programas Etnológicos quem alertou para a necessidade de estudar a dimensão “material” da tradição. Contudo, foi na viragem do século, com Rocha Peixoto que esta situação começa a inverter-se. Se até então os antropólogos apenas se dedicavam às questões inerentes à literatura e às tradições populares, Rocha Peixoto consagra vários textos, relativos ao tema da “arte popular”. Todavia, ao mesmo tempo que as suas obras despoletam um período de investigação etnográfica, nelas predominam “ideias decadentistas” e exaustivas caracterizações negativas sobre a “arte popular”. Tudo isto culmina novamente, como seria de prever, num abandono do estudo da “arte popular”, que apenas é resgatado durante a I República, mediante uma perspectiva mais entusiasta da cultura popular, enquanto forma potenciadora de legitimação nacional.
Contudo, foi, de facto, no âmbito da história de arte e do design que a “arte popular” se afirma como o universo que engloba as “coisas populares”. Este processo envolveu alguns intelectuais como Ramalho Ortigão, Fialho de Almeida e D. José Pessanha, etc. No entanto, foi Joaquim Vasconcelos que incansavelmente se empenhou nesta causa, numa busca pela renovação da arte em Portugal, destacando-se como uma figura central no panorama da arte portuguesa, no decorrer da segunda metade do séc. XIX e das primeiras décadas do séc. XX. Deste modo, defendeu um programa de nacionalização da arte portuguesa que valorizava e pretendia retomar, exactamente, aquilo que era genuinamente português, num ímpeto de rejeição relativamente ao que vinha de fora; com o intuito, por sua vez, de adequar o que é nacional aos desafios propostos pela contemporaneidade.
O movimento acima citado defendia, portanto, a aliança que deveria existir entre o artesão tradicional e o designer moderno; a preferência pela linguagem já enraizada na tradição oral, regional ou nacional, em oposição à estandardização internacionalista.
De facto, e ainda segundo Vasconcelos, seria a partir das tradições e experiências populares que se conseguiria constituir uma tradição industrial e artística capaz de combater a desnacionalização do país; tendo por base, por um lado, o renascimento das “indústrias caseiras”, e por outro, a capacidade da nova indústria e os seus respectivos trabalhos se apoiarem em lições presentes na própria tradição.
A produção etnográfica de Vasconcelos desenvolve-se entre 1913, data em que edita o seu primeiro artigo na revista A Águia (retomado mais tarde por Correia), e o início de 1920, data a partir da qual as suas novas responsabilidades enquanto professor da Universidade de Coimbra o afastam das pesquisas etnográficas. Escreveu, ainda, o artigo sobre “ O Carro Rural” publicado na Vida e Arte do Povo Português, que foi, indiscutivelmente, uma das mais importantes expressões da etnografia do Estado Novo. Esta foi a última obra publicada pelo autor em vida.
Efectivamente, o estudo que Vergílio Correia efectua para A Águia advém de uma caracterização dos principais meios sociais onde a “arte popular” seria produzida. Assim, em primeiro lugar encontra-se a casa de habitação, onde é possível encontrar a “arte caseira” (essencialmente feminina, destacando-se as rendas, os tapetes, os trabalhos com tecidos, etc.), bem como a “ arte de oficina caseira”, também na habitação, mas em compartimentos adequados (essencialmente praticado por homens, destacando-se a olaria, ourivesaria, etc).
Por seu turno, o segundo meio de produção da “arte popular” seriam os campos, onde se desenvolvia a arte pastoril o todos os trabalhos produzidos por pastores e ganhões, em consequência dos “tempos mortos” que caracterizavam estas actividades.
Por último, o terceiro meio de produção da “arte popular” seria as prisões, os hospitais, os manicómios (também em virtude desses mesmos “tempos mortos”). Desta forma, nos períodos em que se encontravam em convalescença, ou nos momentos de sossego, os doentes abriam desenhos e cortavam bonecos de madeira à navalha.
Neste sentido, Correia procura distinguir as manifestações materiais e imateriais da arte popular. Assim, as primeiras são divididas em grandes grupos, como sejam: a casa (aspecto exterior e decoração), a vida social (vestuário, divertimentos, etc.), o aproveitamento dos elementos naturais (agricultura, pesca, moinhos), o aproveitamento dos animais (pastorícia, transporte animal), as indústrias (caseiras e oficina caseira) e a religião (crenças, superstições).
Com efeito, depreende-se, então, que o campo da “arte popular” engloba não somente os produtos, como ainda a arquitectura, as alfaias e tecnologias agrícolas e sobretudo a literatura, a música e as tradições populares.
No entanto, alguns intelectuais desenvolvem estudos nos quais questionam o gosto etnográfico do Estado Novo. Entre estes encontrava-se Ernesto de Sousa, uma personagem ecléctica que marcou a cena artística portuguesa entre as décadas de 1940 e 1980.
De facto, Sousa manifestou um grande interesse pela “arte popular”, nomeadamente no que concerne à arte primitiva e às “coisas populares” (1944). Foi, contudo, na década de 1960 que Ernesto Sousa se torna coleccionador, divulgador, e teórico da arte popular portuguesa. Enquanto coleccionador e divulgador está ligado à descoberta do escultor popular Franklin; enquanto teórico foi o autor de um conjunto de textos, dos quais se destaca o livro Para o Estudo da Escultura Portuguesa, classificando a “arte popular” como “arte ingénua”. Assim, implanta uma nova sensibilidade na forma de caracterizar e qualificar a arte popular, que se manifesta no tipo de objectos que a caracterizam. Em substituição da produção artesanal incentivada pelo Estado Novo, a representação do popular passa a assentar em formas imprevistas e plásticas não padronizadas, que resulta, por sua vez, de uma leitura modernista da arte popular, caracterizada por critérios estéticos.
De facto, para Sousa a “arte ingénua” assume-se como uma prática estética afluente de um sistema de valores caracterizado segundo o primitivismo modernista. Desta forma, defendia que era exactamente por ser primitiva que a “arte ingénua” continha em si, um conjunto de valores que a tornava bastante promissora, não só por ser um elemento essencial de assunção da nacionalidade, como ainda, por estar capacitada para projectar o país no futuro.
Neste sentido, a “arte ingénua” de Ernesto Sousa resulta do trabalho individual dos artistas, ao invés de ser o produto do povo enquanto artista colectivo. É neste mesmo seguimento que Sousa distingue “arte ingénua” de artesanato, uma vez que o “artista ingénuo” quando cria está a expressar o seu mundo, enquanto o artesão se limita a produzir objectos decorativos e usuais, de forma repetitiva e imitativa.

Sem comentários: