O Projecto " Arte Nossa" nasce pela necessidade de atribuir um novo ênfase às questões dos ofícios tradicionais de Castelo de Vide, uma vez que enfrentam o risco de desaparecer por completo, perdendo-se, assim, parte da memória colectiva de Castelo de Vide e, consequentemente, da sua autenticidade.É neste sentido que pretendemos não somente apresentar alguns destes ofícios, como também debatê-los num contexto teórico e numa perspectiva futura.Assim, o projecto incidirá em dois aspectos distintos mas que se complementam: por um lado a mostra de ofícios que será apresentada em pontos específicos da vila que o visitante percorrerá; por outro lado, um debate sobre a importância dos ofícios enquanto manifestações da identidade e autenticidade de Castelo de Vide, bem como promotores de desenvolvimento local.


Arte de Trabalhar o Ferro


E o malho bate o ferro
e o ferro fica soando...
É a voz que vem não sei donde,
Já escutei não sei quando!

E o malho bate no ferro
e o ferro quase o incendeia…
trechos dum velho poema
em cada forja da aldeia!

A arte de trabalhar o ferro remonta a época em que os homens descobriram o metal e, compreendendo todas as suas potencialidades, foram aperfeiçoando a técnica de o trabalhar e moldar, fazendo dele um elemento imprescindível da vida quotidiana.
De facto, e embora se afirme que a arte de forjar lusitana não se equipara à de França, Espanha ou Itália, a verdade é que se olharmos atentamente depressa descobrimos marcas que atestam a criatividade, imaginação, perícia e habilidade dos nossos mestres, que com objectos repletos de simplicidade ou luxo, produziram admiráveis obras de arte!
Esta arte já era, portanto, “reconhecida” por D. Afonso Henriques que concedeu em 1145 aos “ Baronibus Bonis” de Coimbra a correcção dos foros e costumes, em que foram marcados novamente os preços das ferraduras, dos ferros de arado, das esporas, das armaduras, etc., para além do privilégio de que apenas os ferreiros que trabalhassem o ferro o poderiam vender, no intento explícito de incentivar a sua produção.
Foi, de facto, através dos monges de Cister que a arte do ferro começa a expandir-se pela Europa. Estes foram enviados por S. Bernardo, de Bolonha para Portugal, nomeadamente para os mosteiros de Alcobaça e S. João de Tarouca, onde aperfeiçoaram esta arte, que rapidamente se estende a cidades como Guimarães, Porto, Coimbra, Lisboa, Évora e Beja, onde podemos encontrar notáveis famílias de ferreiros (veja-se o caso dos Anes, de Gumarães -1337 a 1513 - ou os Fernandes de Lisboa, cujo fundador morreu em 1848).
Neste mesmo sentido, do período medieval também nos ficaram exemplares riquíssimos e que atestam a poder técnico e o apurado sentido estético que caracterizam os nossos artesãos. É de salientar, desde logo, a grade da Sé Patriarcal de Lisboa (séc. XIII); a grade da Igreja de Nossa Senhora da Oliveira, em Guimarães (séc. XV); a porta do antigo celeiro dos Bispos e do Baptistério da Sé, em Évora (séc. XV); a grade da galilé da Sé de Braga (1505-1532), etc.
Desta forma, e atestando a secularidade desta arte aferimos que a confraria dos ferreiros é uma das mais antigas em Portugal, remontando ao ano de 1229. Com efeito, em muitos documentos régios se referencia o ferro, incentivando-se, inclusivamente, a sua extracção e laboração nas terras de Aljustrel, Alandroal, Moncorvo, Penela, etc…
Por sua vez, do período manuelino há que destacar a grade da galilé de Braga, mandada executar pelo arcebispo D. Diogo de Sousa, e que acabou por marcar o estilo das reixas quinhentistas. Aqui, as curvas medievais são substituídas por varões de ferro ou cercadura de ornatos. Nas partes superiores podem observar-se uma linha de lanças ou espetos, sendo o remate trabalhado segundo os motivos presentes na pedra ou talha. Mas, é igualmente importante frisar a existência de três grades que se encontravam no mosteiro de Stª Cruz de Coimbra e que desapareceram, estando estimadas num valor excepcional.
Contudo, foi no período renascentista que as artes industriais atingem o seu apogeu. Na verdade, em certo momento, o desenvolvimento da arte do ferro foi de tal ordem, que começou a desarticular-se de outros trabalhos.
Foi, sem dúvida, a organização dos grémios de mestres que impulsionou o aperfeiçoamento das artes, tendo a arte de trabalhar o ferro perdido muito do seu valor após o enfraquecimento da acção promovida pela organização, no âmbito da formação dos mesteirais.
Com o início da quarta Dinastia as preocupações régias relativamente ao ferro mantêm-se, embora com intuitos mais práticos que artísticos… De facto, a insuficiência de material bélico e de ferro em vara e verga inquietava o rei D. João IV, que ordena em 1650 o restabelecimento das ferrarias de Tomar e de Figueiró dos Vinhos.
No decorrer dos séculos XVII e XVIII assiste-se à continuação do
“ (…) triunfo da ferraria artística. É por excelência a sua grande época, porque a técnica não cessa de progredir. Os mestres (…) duma habilidade extraordinária, eram capazes de realizar todo e qualquer conjunto, (…) de utilizarem ornamentos em folha de ferro, juntamente lindas incrustações de bronze e de latão, tornando as suas obras mais valorizadas e de superior gosto artístico”
[i]. Dir. LIMA, Fernando de C. Pires de – A Arte Popular em Portugal, vol. I, Editora Verbo, s.l., s.d., p. 194
No séc. XVIII, após o terramoto que destruiu por completo a cidade de Lisboa, os ferreiros desempenharam um papel activo de reconstrução de grades que acabaram por embelezar as varandas e sacadas dos edifícios. As ornamentações começam aqui adquirir um carácter mais leve e simples, à semelhança do período setecentista.
Contudo, em Portugal a partir do séc. XIX, como no resto da Europa, a utilização do ferro propagou-se a outros domínios, nomeadamente à arquitectura a à indústria, negligenciando-se o cariz artístico desta arte, em especial no que respeita os pequenos artefactos.
É, todavia, na segunda metade do séc. XX que o ferro fundido surge em substituição do ferro batido. O ferro fundido permite grades de desenho mais trabalhado, bordados densos e pesados. Porém, a técnica do ferro fundido era desde do séc. IV a. C. do conhecimento dos chineses.



A Arte do ferro fundido em Portalegre
Apesar de existirem registos de ferro artístico em todo o país, parece ser do consenso geral que é na região alentejana, em particular no Alto Alentejo, que a riqueza desta arte melhor se revela.
De facto, relativamente às peças encontradas nesta região, Luís Keil considera
“ (…) que se podem colocar no período mais antigo, que contudo não irá além dos meados do século XV, alguns exemplares, como a grade da sacristiada igreja do Convento de Avis, (…) Esse tipo, repete-se com variantes, nalgumas grades de Castelo de Vide, (...) KEIL, Luís – Inventário Artístico de Portalegre, Academia Nacional de Belas Artes, Lisboa, 1943, p. LIII
Na verdade, no foral dado à vila de Castelo de Vide por D. Manuel I, em 1512, faz-se referência ao ferro e formas de o trabalhar, o que evidenciava a importância que atribuía à arte de trabalhar do ferro.
No reinado de D. Sebastião, a 15 de Novembro de 1558, foi concedido ao bispo de Portalegre, D. Julião de Alva, uma carta de privilégios para exploração das ferrarias que se encontrassem em Castelo de Vide, Marvão, Nisa, Portalegre e Alegrete, derivado da necessidade de ferro que se sentia no reino.
Por outro lado, a maioria das obras desta região concentram-se nas décadas de seiscentos, o que levou o mesmo autor a considerar que “ (…) e sobretudo no século XVIII que mais se deve ter trabalhado na arte de forjar, tecer e recortar o ferro (…). IGUAL A DE CIMA
Das obras de ferro que se salientam na região podemos destacar o fogareiro do Museu de Elvas (séc. XV), as grades do altar-mor da Igreja de Nossa Senhora da Estrela e de Stª Maria de Marvão, as grades do coro do Convento de Stª Clara de Portalegre (séc. XVI), a grade da capela de S. Pedro, da Se de Portalegre, as grades das varandas do Palácio Amarelo, na mesma cidade (séc. XVII) e as grades das sacadas do edifício do “Trem”, em Elvas (1714).
A Casa Museu José Régio contém no seu espolio um grande número de utensílios domésticos como espetos, descansos ou apoios de espetos, descansos de ferros de brunir a roupa, candeias, batentes zoomórficos, etc.,

Técnicas para trabalhar o ferro
1. À mão: quando todo o trabalho é esboçado e concluído sob a acção do martelo e de outras ferramentas de mão;
2. À máquina ou moldado: quando o metal é comprimido por meio de pancadas de corpo bastante pesado, entre formas ou moldes;
3. À prensa hidráulica: quando o metal é tratado como uma substância plástica que é obrigada a adquirir a forma de determinados moldes ou formas, sob o esforço contínuo de uma pressão hidráulica;
4. A quente, na forja: a operação consiste em aquecer o ferro para de seguida o caldear, encalcar, puxar, curvar, cortar, furar, etc., dando-lhe a forma e as dimensões desejadas. É a técnica mais delicada e difícil de executar, que requer um conjunto de outras operações. A saber:
· Caldear – Operação pela qual se liga entre si dois pedaços de ferro. Para realizar esta técnica é necessário aquecer as partes a ligar a uma temperatura tal que se tornem plásticas, de modo a que pela acção da martelagem as moléculas de uma e outra parte se interpenetrem e a força de coesão as ligue entre si formando um todo contínuo. Quando o ferro está quase a caldear lança-se-lhe por cima areia branca que funde sobre a parte aquecida, cobrindo-a de uma camada isoladora que impede a oxidação e refresca um pouco a periferia, dando tempo a que na parte interna a temperatura se eleve, tornando a massa mais uniforme.

· Encalcar – Consiste em exercer um esforço de compressão, no sentido da fibra, sobre uma barra ou varão de ferro, quando se pretende que este engrosse, nalgum lugar, com prejuízo do comprimento da vara, que se vê reduzido. Nesta operação é necessário que o ferreiro aqueça o ferro no lugar onde deve engrossar, fazendo esfriar as outras partes, que não devem mudar de forma, banhando-as em água fria. De seguida, a peça é malhada até se obter a grossura desejada.


· Puxar – Contrariamente à operação anterior, esta consiste em adelgaçar o metal, em benefício do seu comprimento. Para puxar a vara deve-se dar um calor no local adequado, colocar a vara sobre o cavalete, na zona de maior diâmetro e malhá-lo.

· Curvar – Para levar a cabo esta operação podem ser utilizados diferentes processos: 1) colocar o metal bem quente sobre o cavalete e batê-lo sobre a parte de fora até atingir a curva ou ângulo desejado 2) apertar a obra entre as bocas de um torno de bancada e bater no extremo livre até atingir o resultado pretendido 3) sobre um plano traçam-se as curvas que se desejam obter, tanto da parte côncava como da convexa, de forma a ficarem tangentes ao maior número possível de furos do pano. Dispõem-se um certo número de cavilhas, formadas por pedaços de ferro, que entram nos furos do pano, entre as quais se introduz, a quente, a peça que se pretende curvar. O metal curva-se sempre no sentido da fibra. A operação termina dando ao metal um calor ao máximo grau que este possa aguentar, de modo a evitar fendas ou outros defeitos.

· Cortar – esta operação é feita a frio, com o corta-frio, ou a quente, com a talhadeira ou goiva, batendo-se sobre estas ferramentas depois de se lhes colocar o corte sobre o metal assente na parte plana do cavalete. Quando se corta a quente é necessário ir molhando a talhadeira para evitar que ela perca a têmpera.

· Furar – de acordo com as dimensões do material e do furo pretendido, esta operação é feita a quente ou a frio. O metal é colocado no cavalete, de forma a que o eixo do furo que se pretende abrir coincida com o eixo do furo do cavalete, aplicando em cima um punção sobre o qual se dão pancadas precisas. O diâmetro do punção deve ser progressivo, iniciando-se com um redondo e delgado e sucessivamente alargando com outros mais grossos, até chegar ao que tenha o diâmetro desejado.

“A história simples de um homem simples”
Entre todos os ferreiros um se destaca pela sua tenacidade e espírito inventivo: Carolino Tapadejo. A sala de estar da sua habitação transformou-se, pela mão do seu filho de igual nome, numa sala de visitas em que todos entram sem reservas. Esta peculiar sala troca as porcelanas, as madeiras e as telas pelo metal que transforma este espaço num museu vivo da arte do ferro! Quem a visita não fica indiferente a uma tão rica produção que impressiona e deslumbra pela beleza e sensibilidade estética.
Com efeito, a família do senhor Carolino Tapadejo veio para Castelo de Vide em 1492 fugida de Espanha, perpetuando, desde então, a tradição de trabalhar o ferro desde o seu avô João Batista Tapadejo, que deixou o seu legado ao seu pai Carolino Tapadejo Calado, e este aos seus sucessores.
Seu pai casou-se aos 20 anos com Rosalina Coimbra Pina, entrando nesse mesmo ano para o exército, onde permaneceu durante 9 meses exercendo a função de serralheiro. No ano seguinte regressa à sua terra repleto de ideias e com vontade de evoluir no ofício.
Em 1947, morre a sua mulher, com o nascimento do seu primeiro filho de igual nome – Carolino Tapadejo. Em 1949 casa novamente e tem mais três filhos.
Assim, investe na sua formação, compra ferramentas adequadas, e depressa a sua oficina, mesmo em frente à Casa do Morgado, “se enche” de clientes e ganha prestigio. Ao longo de 50 anos o Sr. Carolino Tapadejo teve 101 aprendizes, o que apenas comprova a arte e a mestria com que executava as suas belíssimas obras de arte.
Em 1963 foi convidado a fazer esculturas para os EUA, e em 1974 termina a magnífica fruteira em ferro forjado, que será sempre o seu ex-líbris
Acaba por falecer a 27 de Agosto de 2001 vítima do seu segundo AVC.
Neste sentido, e com o intuito de revitalizar e inovar o velho ofício, o Sr. Tapadejo publicou uma série de textos sobre a sua família e a arte do ferro. De facto, teve o melhor mestre: o seu próprio pai. E embora também ele domine a arte de o trabalhar diz com humildade e convicção que o artista é o pai e não ele!

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